segunda-feira, 7 de maio de 2012

A mídia, as cotas e o sempre bom e necessário exercício da dúvida - por Ana Maria Gonçalves


A mídia, as cotas e o sempre bom e necessário exercício da dúvida

Há anos venho prestando atenção nos absurdos que os formadores de opinião são capazes de dizer contra as cotas. Aqui, alguns exemplos. 


Tenho escrito alguns artigos sobre racismo e, em todos, invariavelmente, apareceu quem tentava fugir do assunto para falar sobre cotas. São assuntos relacionados, eu sei, mas também complexos por si só. Cotas não seriam necessárias se não houvesse racismo. Mas estão aí, os dois, e talvez agora, depois da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, nos dias 25/04/2012 e 26/04/2012, reafirmando a constitucionalidade das cotas, possamos começar a conversar de verdade sobre eles. Porque talvez a velha mídia pare de fazer a campanha suja que vem fazendo e nos deixe, finalmente, tratar desses assuntos e das vidas das pessoas por eles modificadas (brancos, negros, cotistas, não-cotistas etc…) com a honestidade e o respeito que todos merecem. É agora que começa o trabalho, e é bom que a gente tente separar, principalmente, o que é fato do que foi campanha, o que é verdade histórica do que foi mero exercício de futurologia. Será um longo caminho que vamos ter que aprender a trilhar juntos, independente de sermos contra ou a favor. Somos sujeitos históricos: o que fizemos ontem, como povo e como indivíduos, reflete na realidade que temos hoje, assim como o que fazemos hoje vai determinar com o que teremos que conviver amanhã. A História não nos deixa viver impunes.

Quando mudei de opinião sobre as cotas, em 2006, aprendi a duvidar. Durante um bom tempo ainda me vi balançada entre argumentos, mas todos eles perderam a força quando vi esse video, de 2007. Nele, Seu Jorge conta que sua filhinha mestiça, de 6 anos, era segregada pelas coleguinhas na escola de balé. Isso não tem nada a ver com preconceito de classe, é racismo puro. Racismo entre crianças de 6 anos. As coleguinhas a segregaram porque ela era diferente, e a única diferença visível estava na cor. “Essa menina/ tão pequenina/ quer ser bailarina”, diz o poema de Cecília Meireles, Mas depois esquece todas as danças/ e também quer dormir como as outras crianças. Alguém tem alguma ilusão de que a filha de Seu Jorge, depois de uma brutalidade dessa, conseguirá dormir como as outras crianças de sua escola de balé? Se a gente continuar querendo acreditar que não é problema nosso, que todos nós que vivemos nos tempos de hoje não temos nada a ver com os resquícios perenes e dolorosos da escravidão, isso vai continuar acontecendo. Crianças de seis anos continuarão sendo vítimas de racismo. Brancas, mestiças ou negras. Porque o racismo que marca sem dó a criança estigmatizada, tem na outra ponta aquela que vai crescer presa a esse sentimento nefasto, mesmo que no futuro aprenda que ele é reprimível e condenável. Esse livro de Eliane Cavalleiro nos mostra que racismo introjetado na infância não desaparece sozinho. Para combatê-lo, e todos nós estamos sujeitos a ele, é necessário um exercício contínuo e nem sempre agradável de observação e conhecimento de nossas palavras e reações e, sobretudo, do ambiente à nossa volta. Alguém tem alguma dúvida de que, se os pais dessas crianças que se recusaram a dar a mão para a filhinha de Seu Jorge tivessem amigos, vizinhos e colegas de trabalho negros, com quem convivessem em situação de igualdade, essa situação poderia ser diferente? Provavelmente ninguém as instruiu a não dar a mão. Elas observaram e concluíram: aqui há uma diferença, e ela envolve cor. Para ajudar a combater o racismo e o preconceito de cor, as ações devem ser pontuais e específicas, como as cotas raciais. Que não são, de maneira alguma, incompatíveis com as cotas sociais, específicas para ajudar a combater a desigualdade econômica. Preconceito de classe e preconceito de cor, embora muitas vezes se sobreponham, não são a mesma coisa, e exigem soluções diferentes. São assuntos sérios que exigem, sobretudo, que sejam deixados à margem de disputas políticas e de poder. Há racismo e luta anti-racismo na direita e na esquerda. Não é bandeira de ninguém, embora ainda sejam tão poucos os dispostos a carregá-la. Há racismo e luta antirracista na direita e na esquerda (recomendo a leitura do livro O Marxismo e a questão racial – Karl Marx e Friedrich Engels frente ao racismo e à escravidão). Não é bandeira de ninguém e é de todo mundo, e tenho esperança de que um dia seremos muitos a carregá-la. 

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