segunda-feira, 24 de maio de 2021
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020
Noam Chomsky dá início as Jornadas Libertárias da CGT Valência – por ANA
Noam Chomsky dá início as Jornadas Libertárias da CGT Valência
A 22ª Jornadas Libertárias da CGT de Valência começou na segunda-feira, 21 de dezembro, com uma entrevista em videoconferência com o linguista, filósofo e ativista Noam Chomsky, transmitida nas redes sociais da organização anarcossindicalista.
Noam Chomsky, linguista, filósofo e ativista foi encarregado de iniciar a A 22ª Jornadas Libertárias da CGT de Valência com uma entrevista conduzida pela organização anarcossindicalista, na qual ele abordou vários aspectos da sociedade atual. O veterano pensador norte-americano mostrou que ainda brilha aos 92 anos de idade, continua dando aulas e realiza encontros regulares com outros linguistas de diferentes partes do mundo, como o próprio Chomsky explica na entrevista, ao mesmo tempo em que afirma que “nunca abandonou seu ativismo social desde os 10 ou 11 anos de idade”.
Este ano, as Jornadas Libertárias da CGT de Valência atingem 22 anos e visam refletir sobre o apoio mútuo como um pilar para a construção de uma nova sociedade. Questionado sobre este ponto, Noam Chomsky afirma que “Kropotkin estava certo” e dá como exemplo “a reação humana espontânea” que ocorreu em diferentes lugares durante a pandemia da COVID-19 com “pessoas ajudando umas às outras e trabalhando juntas para superar a situação”, apesar de “as estruturas destinadas a miná-la”. Chomsky também conta com os sindicatos como uma ferramenta para lidar com o “pequeno setor da população” que aumentou seus lucros, enquanto “a grande maioria estagnou ou diminuiu seus recursos”.
Noam Chomsky chama o que aconteceu neste verão na Europa com a pandemia de uma “catástrofe”. “Eles queriam aproveitar as praias espanholas ou esquiar nos Alpes”, explica o linguista, acrescentando que “a crise mais grave que estamos enfrentando é a ambiental, muito mais do que a pandêmica”, pois segundo o pensador americano “não há volta atrás, as calotas de gelo estão derretendo, não podemos consertá-las” e ele acredita que “ainda nos restam algumas décadas para tentar superá-la e, se não aproveitarmos a oportunidade, a espécie humana estará acabada”.
O final da entrevista é um chamado à ação por parte de Noam Chomsky: “é possível, está ao nosso alcance fazer um mundo melhor, mas temos que fazê-lo”.
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Casa abandonada—
a aranha faz sua teia
na porta de entrada
Regina Ragazzi
Fonte: [Espanha] Noam Chomsky dá início as Jornadas Libertárias da CGT Valência (noblogs.org)quinta-feira, 26 de novembro de 2020
terça-feira, 10 de novembro de 2020
Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)
Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)
O mais importante filósofo e militante socialista negro hoje
nos EUA fala sobre as eleições presidenciais, o declínio de mais um império, a
relação entre espiritualidade e materialismo e a necessidade de combater o
capitalismo para preservar a humanidade.
Dr. Cornel West em Beverly Hills, Califórnia, 2016. (Frederick M. Brown / Getty Images)
Cornel West é uma das vozes mais eloquentes e provocadoras
da esquerda norte-americana. Professor e pesquisador da Harvard Divinity
School, começou sua vida política nas revoltas dos movimentos pelos Direitos
Civis – passando de cristão radical para um socialista e aliado do Partido dos
Panteras Negras.
Sua carreira vai muito além de sua trilha acadêmica como
filósofo ou vida política na esquerda, esteve também envolvido com
cultura, desde colaborações musicais com Prince e Talib Kweli até uma
aparição na série Matrix. Ele também fez carreira nas rádios, apresentando
distintos programas, atualmente apresenta o podcast The
Tight Rope, com Tricia Rose.
Nesta recente conversa com Grace Blakeley para o
podcast A World to Win,
Cornel West discute a eleição presidencial dos EUA, o movimento Black Lives
Matter – e a importância da espiritualidade para a política radical.
Você disse recentemente
em uma entrevista que para enfrentar “o gângster neofascista na Casa
Branca, precisamos fazer parte de uma coalizão antifascista”. Você acha que uma
frente anti-Trump poderia ter sucesso? E você acredita que a presidência de
Biden pode promover algo que se aproxime da mudança de que os EUA precisam
agora?
Precisamos ser consistentes em nossa crítica ao império, ao
capitalismo, ao patriarcado, à homofobia, à transfobia e à supremacia masculina
e branca. E a maneira como fazemos isso é buscando manter nossa integridade
intelectual e nossa coragem política: contando a verdade sobre Donald Trump, o
neofascista, o gangster, sobre seus colaboradores e facilitadores. Ele está
empurrando o país para o fascismo genuíno: total desrespeito às leis, domínio
das forças armadas, domínio do grande capital de Wall Street e do Vale do
Silício. Ele está esmagando trabalhadores, marginalizando mulheres, usando os
mexicanos, muçulmanos, judeus, negros, pardos e indígenas como verdadeiros
bodes expiatórios.
Agora, acredito que com Biden, o que teremos é alguém que
pode impedir o movimento acelerado em direção ao fascismo norte-americano. Isso
é muito importante – mas seu governo neoliberal ainda estará vinculado a Wall
Street, vinculado ao grande capital, vinculado ao militarismo, vinculado
ao Africom, a políticas profundamente reacionárias no Oriente Médio com
Netanyahu e assim por diante. Não queremos mentir sobre Biden. Não queremos
alimentar nenhuma ilusão simplesmente porque estamos diante de um Frankenstein
feio e fascista como Trump. Então, estamos realmente entre a cruz e a espada,
que é onde a esquerda normalmente esteve nos últimos 50 anos.
Uma pesquisa recente da CNN mostra que o apoio ao
movimento Black Lives Matter caiu desde junho. A maioria, 55%, ainda apoia os
protestos, mas isso diminuiu dos 67% de junho passado. Isso te preocupa? Você
acredita que há alguma maneira de reverter isso, ou é apenas parte da
estratégia de Trump?
Acho que faz parte da estratégia de Trump. Houve um ataque
indiscriminado ao movimento Black Lives Matter para caracterizá-lo como um
movimento terrorista, como um movimento de ódio. Isso é um sinal de sucesso.
Isso significa que você na verdade constitui uma ameaça substantiva ao status
quo, não apenas para a polícia usar seu poder para assassinar pessoas, mas
conectá-lo a uma crítica ao poder de Wall Street e aos crimes de Wall Street.
Conectando-o a uma crítica ao poder do Pentágono e aos crimes do Pentágono.
Nesse sentido, a intensidade do ataque é um sinal do grau em que você constitui
uma ameaça ao status quo. E eu acho que é exatamente onde queremos estar. Nós
apenas temos que combater essas mentiras com algumas verdades e criar algum
tipo de movimento de compensação, instituições, periódicos, bem como indivíduos
no local.
Gostaria de saber sua opinião sobre a pandemia. Há uma
pesquisa realizada pela NPR mostrando que a pandemia está aumentando a
distância de riqueza racial: 60% das famílias negras, 72% das famílias latinas
e 55% das famílias nativas nos EUA enfrentaram sérios problemas financeiros
desde o início da pandemia; contra 36% das famílias brancas. Sabemos que a
crise do desemprego, a crise dos despejos e o peso atual da doença também estão
sendo sentidos com mais força pelos negros e latino-americanos. Então, como as
pessoas podem organizar a saída dessa crise profunda e generalizada?
É por isso que precisamos ter uma crítica do sistema e
visões alternativas bem como maneiras de fortalecer nossa resiliência em face
do sistema. Enquanto tivermos questões isoladas, enquanto permanecermos em
nossas torres e em nossos respectivos espaços sem solidariedade, não temos
chance alguma.
Portanto, é fácil fetichizar raça ou gênero como uma
identidade e não conectar essa identidade a uma crítica do predatório sistema
capitalista, o que nos permitiria reconhecer os graus de solidariedade que
devemos ter com os trabalhadores e pobres. Não devemos isolar essas identidades
para que percamos de vista a integridade e a consistência de nossa crítica ao
capitalismo.
Você tem uma vida e uma carreira incrivelmente ampla
como filósofo, ativista, intelectual, artista e figura moral nos EUA.
Obviamente, você passou sua carreira como escritor na academia, estudando e
ensinando filosofia e teologia. O que fez você querer estudar essas grandes
ideias?
Venho de uma família ocidental muito amorosa. A maior honra que
já tive foi ser o segundo filho de Irene e Clifton. Eu nunca serei o ser humano
que meu pai foi; ele morreu há 26 anos. Minha mãe ainda está viva, com 88 anos
de idade, com uma escola primária levando seu nome em sua homenagem. Ela e o
meu pai deram muito amor e apoio. Isso me libertou, porque eu era quase um
gângster na juventude. Eu batia nas pessoas o tempo todo. Fui expulso da escola
por bater em um colega por se recusar a saudar a bandeira. Meu tio-avô foi
linchado e eles o enrolaram na bandeira, então eu associei aquela bandeira a
algo horrível e cruel.
Quando comecei a crescer intelectualmente fui influenciado
pela igreja – sempre me vi como um cristão revolucionário, no legado de Martin
Luther King e Fannie Lou Hamer – e trabalhei em estreita colaboração com
o Partido dos Panteras Negras. Ali eu já tinha uma crítica do capitalismo, do
império, da homofobia e do patriarcado, porque era sobre isso que debatíamos na
sede dos Panteras Negra.
Eu ensinava no Programa de Café da Manhã dos Panteras Negras.
Eu ensinava na prisão Prisão de Norfolk, onde estava Malcolm X. Eu nunca estava
nas festas porque era cristão e eles eram profundamente seculares. E isso foi
bom. Eles tinham fortes críticas à igreja, reconheço várias delas. Mas eu tinha
meu próprio entendimento de Deus e Jesus e da luta e revolução. Ficamos muito
próximos, mas não consegui entrar.
No período em que frequentei a Universidade, fui exposto a
uma magnífica onda de ideias. Eu me apaixonei por muitas dessas figuras
intelectuais importantes. Fosse Karl Marx, William Morris, William Hazlitt,
Virginia Woolf, Raymond Williams e mais tarde Edward Said. Todas essas pessoas
significaram muito para mim.
Eu estava na academia estudando com John Rawls, Hilary
Putnam, Stanley Cavell, Martha Nussbaum, Martin Kilson e Preston Williams.
Depois fui para Princeton estudar com Richard Rorty e Sheldon Wolin. Essas eram
figuras imponentes que abriam a minha vida intelectual e destruíam muito do meu
paroquialismo. Sempre fui uma espécie de negro livre, amante de Jesus,
preocupado com os pobres e os trabalhadores. Mas isso me permitiu fazer parte
de uma conversa mais ampla.
Com C. L. R. James, Du Bois, Nkrumah, Nandy, Ambedkar e a
irmã Roy da Índia. Foi um bom momento pra mim. Eu gosto da vida intelectual,
mas sempre tento usá-la como uma arma para capacitar e enobrecer as pessoas
vulneráveis, não importa quem sejam.
Eu acredito que há muitos elementos heterogêneos de
genocídio e patriarcado na Bíblia Hebraica que devemos manter distância. Mas
existe essa noção de “chesed” (misericórdia). A forma mais elevada de ser
humano é espalhar a benevolência e o amor inabalável ao órfão, à viúva, ao
desassistido e ao oprimido. Eu sempre acreditei que se fosse para ser parte do
que buscava Moisés, que na sua essência era a libertação, eu teria que ter uma
crítica profunda não apenas do Faraó, mas do sistema que mantinha o Faraó no
lugar.
É por isso que as pirâmides nunca me inspiraram
profundamente, porque os trabalhadores e os pobres nunca poderiam ser
enterrados lá dentro. Eles podiam construir as pirâmides, mas nunca poderiam
ser enterrados dentro delas. Portanto, tenho uma crítica profunda aos Faraós,
seja qual for a cor em que surjam, seja qual for o gênero. Mesmo quando eles
têm edifícios tecnológicos magníficos, quando você realmente olha para o
sistema, você diz: “Não. Estou com os pobres e os trabalhadores que construíram
as pirâmides.” São eles que sempre destaquei, embora fossem esquecidos e
invisíveis. É a isso que sou solidário.
Aprendi isso seriamente pela primeira vez nas escrituras
hebraicas – ser solidário com os oprimidos. Como aconteceu com Jesus entrando
na cidade e expulsando os cobradores de impostos. Quem são os cobradores no
império norte-americano? Wall Street, Pentágono, Casa Branca, Congresso,
Hollywood, todos eles ocupam o mesmo lugar. Harvard, Yale, Princeton, todos
eles ocupam o mesmo lugar. Jesus expulsaria todos. E é por isso que ele foi
colocado crucificado pelo império mais poderoso da época.
Dessa forma, há o que chamo de centelha profética nas escrituras
hebraicas. De Jesus a Muhammad, com sua maneira profética própria, que leva,
por exemplo, a um Malcolm X. Mesmo muitos dos meus irmãos e irmãs seculares, a
quem amo muito, teriam que reconhecer que sua profunda solidariedade com os
povos oprimidos e sua história, uma vez que derrubem os mitos, vem desse amor,
cuidado, preocupação pelos vulneráveis que foi cultivado dentro dessas
instituições religiosas, mesmo quando essas instituições religiosas tendem a
violar. E foi isso que R. H. Tawney, que sempre foi um dos meus heróis na
tradição britânica, disse em The Acquisitive Society, Equality and
Religion and the Rise of Capitalism.
Isso ressoa em mim até hoje. Eu me considero um cristão e um
socialista. Como um dos meus grandes heróis, Tony Benn. Parece óbvio para mim
que você não consegue uma transformação social coletiva sem alguma forma de
transformação espiritual – qualquer que seja a religião ou forma de
espiritualidade.
Precisamos ser honestos sobre isso porque veja, uma das
formas como o capitalismo se reproduz é a mercantilização de todos e de tudo –
para criar aqueles homens vazios de que TS Eliot falava, para criar essas
criaturas moralmente e espiritualmente vazias, cujo o senso de estar no mundo é
ser excitado pelo bombardeio de mercadorias. Portanto, não há ativos para
valores fora do mercado, como amor, justiça e solidariedade profunda, ou estar
a serviço dos outros, assumir o risco de estar ao serviço dos outros, estar
com, não além nem acima, mas ao lado.
Outro grande exemplo é o Dr. Martin Luther King, ele próprio
um socialista democrático. São tantos. O primeiro foi Reinhold Niebuhr, que
escreveu Moral Man and Immoral Society, era um socialista democrático. Nós
vivemos uma onda de pessoas que desempenharam um papel tão importante na
tentativa de manter vivo algum senso profundo de amor e justiça. Sem contar o
amor pela beleza.
Porque venho de um povo, que depois de 244 anos da forma
mais bárbara de escravidão moderna, onde não se podia aprender a ler ou escrever,
nem adorar a Deus sem supervisão branca, onde a expectativa de vida era de 26
anos de idade, tinha como formas dominantes de espiritualidade o amor pelo
belo. Você erguia sua voz, fugia à noite de mãos dadas. E você cantava essas
belas canções, Swing Low, Sweet Chariot e Wade in the Water, God
Go Trouble the Water.
Não era apenas o ilógico; foi artístico. Era uma forma de se
agarrar a algo belo diante do terror e do trauma. O tipo de coisa que Rainer
Maria Rilke nos lembra em seus poemas, como a beleza se torna fonte de
resiliência diante do terror e do trauma sendo institucionalizada década após
década após década, para que a música se torne fundamental em nossas vida. As
artes em geral tornam-se fundamentais na vida. E assim a conexão entre o amor à
verdade e o amor à beleza e o amor à justiça, e para mim, o amor a Deus, estão
todos entrelaçados.
Você fala sobre a ideia de que inerente a qualquer
conceito ou formação, existe a semente de seu oposto. Você vê isso, obviamente,
em muitas religiões. Definitivamente no início do cristianismo. Mas também no
socialismo e nas suas análises do capitalismo, que postulam que o capitalismo
está cheio de contradições que acabarão por levar à sua própria destruição.
Karl Marx tornou-se um dos grandes profetas seculares do
século XIX porque não tinha apenas uma preocupação com o sofrimento do povo,
mas porque analisava em a Crítica da Economia Política de que as
estruturas no local de trabalho criam relações assimétricas de poder, entre
patrões e trabalhadores, de capital e trabalho; criando a fricção da luta de
classes na tensão entre as classes.
Aqui, Marx está muito próximo do melhor dos românticos, ele
quer que a individualidade se desenvolva e floresça. Pense em sua descrição
maravilhosa em A Ideologia Alemã. Não suporta especialização,
burocratização, domínio sobre os trabalhadores comuns. Ele acredita que suas
vidas são tão valiosas quanto a vida de qualquer outra pessoa. É uma
sensibilidade democrática radical que vai contra a corrente.
Marx e Engels estavam fugindo das classes dominantes que os
perseguiam. Agora vivemos um momento de contradições: a catástrofe ecológica,
as catástrofes econômicas. As contradições podem ser regionais, como na União
Europeia. Ou estar vinculado a um estado-nação. Podem ser regiões dentro do
mesmo estado-nação. Todas são formas de dominação do capital sobre o trabalho.
E são atravessados por várias formas de práticas patriarcais e de supremacia
branca.
Em The Age of Empire, o irmão Eric Hobsbawm nos lembrou
o que é o imperialismo. Os impérios norte-americano e soviético surgiram depois
de 1945 com a descentralização e ao longo do tempo, a destruição completa do
Império Britânico, o império em que o sol nunca se punha. Quem poderia imaginar
que o império acabaria? Todos pensaram que continuaria indefinidamente. Os
portugueses e os espanhóis também pensaram isso.
Bem, agora o império norte-americano está entrando em
declínio. Precisamos ser capazes de acompanhar as maneiras pelas quais o
capitalismo predatório passa de unidades imperiais e Estados-nação a esses
regimes e organizações regionais, e também como ele se infiltra em cada canto
de nossos corações, mentes e almas. Como ele cria a forma mercantilizada de ver
o mundo com manipulação, dominação, colocando a economia na frente da vida
comum. É quase Martin Buber, eu-ser versus eu-coisa.
Aquele eu-indiciduo com o qual Marx estava preocupado nos manuscritos
de 1844. Como você transcende essas formas de alienação no local de trabalho,
alienação do dinheiro, alienação individual? São noções ricas e indispensáveis
para qualquer discurso sério sobre a emancipação das pessoas comuns em uma
época em que a ganância só enlouquece em suas formas institucionais e
estruturais.
Você mencionou o império norte-americano. Quero saber
o que você acha que são as implicações do papel imperialista dos EUA no sistema
capitalista para a estrutura da sociedade.
Bem, o reverendo Martin Luther King costumava dizer: “Quando
você joga bombas no Vietnã, elas também caem nos guetos da América”. Elas
também caem sobre os brancos pobres nos Apalaches. Elas caem nos bairros de
nossos irmãos e irmãs de língua espanhola. Elas caem nas reservas de nossos
preciosos irmãos e irmãs indígenas. Há uma conexão direta entre o militarismo
no exterior e a falta de recursos para empregos, moradia, saúde, educação e com
a militarização do contexto doméstico.
É com isso que estamos lidando agora com esses policiais. A
polícia sempre foi uma grande ameaça contra os povos vulneráveis, especialmente
os negros, mas a militarização em massa ocorreu sob o regime neoliberal, onde
os departamentos de polícia começaram a se parecer cada vez mais com unidades
militares em Bagdá. Você comete uma contravenção e obtém uma resposta
militarista.
Pense em Breonna Taylor: no meio da noite, eles entram
batendo na porta dela como se ela fosse mafiosa e tivesse cometido um crime,
como se na verdade tivesse matado alguém. Eles começam procurando por um pacote
de drogas e acabam matando-a sem motivo. Há uma conexão direta entre a política
externa, que é uma dinâmica imperialista e a política interna, que é liderada
por multinacionais.
O resultado, é claro, é uma classe trabalhadora altamente
empobrecida. O ponto culminante é o bombardeio espiritual que afeta os
trabalhadores e seus filhos porque eles aderem a valores que não são do
mercado, como intimidade e vulnerabilidade. Você deve estar sempre duro e
disposto a assumir uma postura como se estivesse pronto para lutar a cada
segundo, pois, o objetivo é a sobrevivência do mais inteligente.
É quase pior do que o darwinismo social, no qual a
sobrevivência do mais apto é teorizada nas palavras de Herbert Spencer, porque
a sobrevivência do mais esperto é na verdade a amplificação de Trasímaco na
República de Platão. Tudo se resolve com a ideia de que “poder é certo”. Essa
“ganância é boa para você”. Tudo é “dominação e manipulação”. Isso tem a ver
com a tristeza do nosso mundo. É parte da escuridão congelante que Max Weber
viu em seus escritos. Ele olhou para fora, não viu apenas desencanto. Ele
descreveu uma escuridão gelada que se expandiu com a combinação de
mercantilização, burocratização, objetificação e dominação, que juntas criam
esta gaiola de ferro para os homens.
Perguntei a Noam Chomsky outro dia – tivemos um diálogo
maravilhoso na Progressive International – “O que nos faz pensar que
nós, como humanos, temos a capacidade de evitar a autodestruição? O que nos faz
pensar que as pessoas comuns têm a capacidade de determinar seu próprio
destino, em uma visão democrática radical?” Essas são perguntas especulativas,
mas são nossos esqueletos no armário. A conclusão foi: “Bem, nós realmente não
sabemos.” Veja os precedentes históricos. É uma história de crime, loucura e
ganância, mas também é uma história de resistência a tudo isso. Precisamente
porque podemos fazer essas perguntas, nos tornamos mais fortes, nos tornamos
mais dedicados, nos tornamos mais preparados para garantir que nós, como
espécie, possamos evitar a autodestruição.
Como seres humanos, podemos nos governar no local de
trabalho. Não precisamos de mestres. Podemos ter conselhos de trabalhadores.
Uma deliberação democrática. Podemos ter culturas democráticas nas quais
aprendemos uns com os outros como se tivéssemos jazz e hip hop de um lado, flamenco
e rebetiko do outro; ou as canções folclóricas que moveram William Wordsworth
em seus primeiros anos radicais e Robert Burns na Escócia. Ainda nem chegamos
ao irlandês. Mas precisamos ter aquele tipo de encontro humano profundo que não
homogeneíze nossas especificidades, mas use nossas diferenças como uma forma de
aprofundar a comunhão e a comunidade, ao invés de aprofundar a dominação e a
subordinação.
Nos é oferecida uma ideia de democracia representativa
que está sempre ao lado do capitalismo. Você tem democracia no reino da
política, mas você deve ter mercados livres no reino da economia: são coisas
separadas e nunca se encontrarão?
E aí você vê a hipocrisia. Porque os liberais vêm e dizem:
“Estamos muito preocupados com a concentração de poder na esfera política.
Tivemos monarcas, reis e rainhas. Devemos ter direitos e liberdades. Devemos
ter igualdade perante a lei”.
Bem, e quanto à concentração de poder na economia? Com os
oligarcas, os monopólios, os oligopólios? Eles são igualmente ditatoriais.
Então, sim, estamos com os liberais no sentido de que nos certificamos de que
não temos reis e rainhas e um poder incontrolável na arena política. Mas
ficamos com entidades semelhantes a reis na economia global, nacional e
regional.
Portanto, podemos dizer aos liberais: “Oh, você não fala
sério sobre a liberdade. Você quer liberdade para poucos. Achei que você
realmente acreditava na universalidade dessa liberdade. Você quer liberdade
apenas para uma classe”. Também seria verdade em termos de gênero e raça. Marx
e os outros que fizeram essa crítica são vozes indispensáveis.
Você acha que a democracia pode ser uma arma contra o
capitalismo? Você acha que aprofundando da democracia, quer estejamos falando
sobre partidos políticos ou nossas instituições sociais e econômicas, nossos
locais de trabalho, nossas comunidades, podemos realmente começar a erodir o
poder sobre nossas vidas desses monopólios, oligopólios, banqueiros, políticos
e a classe dominante?
Venho de um povo negro cujo hino é “Levante sua voz”. Vamos
levantar nossas vozes. E se pudéssemos levantar as vozes do que Sly Stone chama
de “pessoas do dia-a-dia” pesarem em todos os processos de tomada de
decisão e instituições que orientam e regulam suas vidas, essas vozes não
escolheriam a pobreza. Eles não escolheriam escolas decrépitas. Eles não
escolheriam a falta de cuidados de saúde. Eles não escolheriam casas infestadas
de ratos.
A democracia vinda de baixo leva a sério essas vozes
enquanto elas lutam contra a miséria e o sofrimento social, e permite que
moldem seus destinos de tal forma que seus filhos possam frequentar escolas de
qualidade como os filhos da classe dominante. Que suas mães e pais tenham
cuidados de saúde como as elites do poder. A democracia vinda de baixo é uma
ameaça a qualquer poder hierárquico, tanto na esfera política quanto na
econômica.
É aí que o jogo fica sério, entra em cena a grande acusação
de Eugene O’Neill contra a civilização capitalista norte-americana, na maior
comédia já escrita nos EUA, The Iceman Cometh. Ele era um anarquista como
meu querido irmão Noam Chomsky. Mas ele argumentou, como Dostoiévski, que a
maioria dos seres humanos teria preferido a ganância à liberdade, que também
teria escolhido a opção de se juntar aos gananciosos no poder, em vez de correr
o risco de simpatizar com os pobres, porque parece muito difícil. É mais fácil
pensar que de alguma forma você pode se tornar o próximo Bill Gates ou
Rockefeller.
Esse foi o projeto norte-americano, sua forma de
individualismo. Mas ele e Dostoiévski, é claro, criticam a espécie humana. Eles
acreditam, de fato, que nós, seres humanos, preferiríamos escolher a autoridade
em vez da liberdade. Que preferimos seguir o Pied Piper em vez de organizar e
gerenciar nossos locais de trabalho pessoalmente. Parte do projeto democrático
radical é mostrar que estão errados. Mas não há dúvida de que é uma batalha
difícil.
Tradução: Aline Klein
SOBRE OS AUTORES
Cornel
West é filósofo na Harvard Divinity School e ativista político.
Seus trabalhos incluem Race Matters e Democracy Matters, e aatualmente é o
co-apresentador do podcast The Tight Rope.
Grace
Blakeley pesquisadora do Instituto de Pesquisa de Políticas
Públicas (IPPR).
Fonte: https://jacobin.com.br/2020/11/cornel-west-trump-esta-empurrando-o-pais-para-o-fascismo-genuino/
Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo - por Eric Laursen (A.N.A.)
Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo
Possivelmente, a última coisa que David Graeber escreveu
para publicação foi uma introdução de sua coautoria, com seu amigo de longa
data e camarada intelectual Andrej Grubacic, para a Mutual Aid (“Ajuda
Mútua”), o clássico trabalho sobre a história da cooperação humana (e animal)
pelo anarquista russo do século 19 Peter Kropotkin. Discutindo o impacto do
livro de Kropotkin, que desafiou a moralidade do “cada um por si” que o
capitalismo adotou por meio de uma leitura errada da teoria da evolução de
Darwin, David e Andrej disseram o seguinte: “Tais intervenções… revelam
aspectos da realidade que eram consideravelmente invisíveis, mas uma vez
revelados, parecem tão óbvios que eles nunca mais poderão ser ignorados.”
Qualquer um que o conheceu imediatamente reconhece isto como
puro David, traçando sua busca ao longo da vida para descobrir padrões e
tendências no comportamento humano que nossos governantes — as autoridades, o
Estado, a religião organizada, capitalistas e o resto — se esforçam tanto para
esconder. Descobrindo estes padrões, como Kropotkin fez em seu livro, não é
apenas divertido e esclarecedor — que atraiu o lado travesso de David — mas um
salva-vidas, nos oferecendo caminhos alternativos em um mundo marcado pelo
medo, exploração, pobreza, guerra, assassinato em massa e a destruição de
qualquer cultura fora do mercado.
Em nossas duas décadas de amizade e colaboração ocasional,
eu nunca vi David mais feliz do que quando ele começava uma frase, “Bem, a
parte engraçada é que…” sempre seguida por uma observação paradoxal sobre
alguma instituição, pessoa famosa ou aspecto da história e desenvolvimento
humano. Ele tornou o aprendizado e o entendimento genuinamente estimulantes,
mas também foi intensamente sério sobre isso, pois para ele, assim como para os
maiores pensadores, tudo — o mundo, a vida humana — dependia disso.
David e eu nos tornamos amigos no início dos anos 2000 como
membros do New York City Direct Action Network (“Rede de Ação Direta de Nova
York”), que reunia anarquistas e ativistas anarco tolerantes, inicialmente em
torno dos protestos em massa que seguiram o fechamento da reunião de 1999 da
Organização Mundial do Comércio em Seattle: o mesmo cenário que deu origem
ao The Indypendent. Assim como eu, ele foi ativo politicamente e um
anarquista durante anos, mas a sua estreia literária só veio em 2004 com a
publicação de um “livrinho” (como ele o chamou), Fragments of an Anarchist
Anthropology (“Fragmentos de uma Antropologia Anarquista” em tradução livre).
Ainda é o meu favorito dos seus escritos, ele identificou uma tendência
anarquista na antropologia que retoma alguns de seus primeiros praticantes e
apresentou uma série de projetos para o movimento anarquista que são tão
interessantes de se considerar hoje, incluindo:
• uma teoria do Estado,
• uma teoria das entidades políticas que não são os Estados,
• uma nova teoria do capitalismo,
• uma ecologia de organizações voluntárias,
• uma teoria da felicidade política,
• uma análise da privatização do desejo, e
• uma ou muitas teorias da alienação.
O livro foi uma espécie de manifesto, e o denominador comum
em todos os itens acima era o mesmo que seria ao longo da vida de David como
estudioso e ativista: nos fazer ver nosso mundo e nós mesmos de maneira
diferente, como promissores, como ilimitado. Alguns desses projetos que ele
mesmo abordou antes de sua morte, outros são um desafio e uma inspiração para o
resto de nós do movimento.
Indiscutivelmente, o melhor momento de David como um
ativista e autor foi a fortuita publicação de Debt: The First 5,000 Years
(“Dívida: os primeiros 5.000 anos” em tradução livre) assim como a raiva
pública sobre o desastre econômico de 2008 estava se aglutinando no Occupy Wall
Street e na onda de democracia direta e autônoma em torno dele. Como um dos
primeiros organizadores do OWS (Occupy Wall Street), David sempre será
associado ao slogan, “Nós somos os 99%!” (embora ele não reivindicasse o
crédito exclusivo por isso). Sua verdadeira conquista foi nos fazer ver a
dívida pelo que ela realmente é: um sistema de dominação que privilegia aqueles
que são considerados como tendo um “bom crédito” e prejudica aqueles que se
considera que não possuem. Muitas pessoas tinham algum entendimento disse após
a quebra de 2008, mas David — em seu livro e através do seu trabalho com a OWS
— ajudou a cristalizar essa ideia e fazer disso um foco para a organização.
David sempre estava nos bombardeando com ideias e
perspectivas novas, do Rolling Jubilee Fund que compra e apaga dívidas com a
praga dos “bullshit jobs” (trabalhos absurdos), com as “alegrias secretas da
burocracia” para seu maravilhoso ensaio sobre “The People as Nurse-maids to the
King” (“O povo como babá do rei” em tradução livre) (leia e descubra). Muitos
de nós nos lembramos de quando, a polícia, em Washington, cercou centenas de
ativistas, incluindo David, e ele virou o jogo ao pedir dezenas de pizzas para
serem entregues às massas ali presas. (Como Emma Goldman, David veio para a
revolução para dançar.) Nunca houve um problema ou situação, na opinião de
David, que não pudesse ser ajustado para significar algo diferente do que nos
disseram que significava, e provavelmente seria algo libertador. Podia ser na
forma de palavra escrita ou ação direta, mas de qualquer forma, sempre trazia a
marca de sua mente única.
David faleceu aos 59 anos, a tragédia é que haveria muito
mais. Nós ainda podemos esperar ansiosos pelo seu último livro, The Dawn
of Everything: A New History of Humanity (“O Amanhecer de Tudo: Uma Nova
História da Humanidade”), que foi escrito com David Wengrow e ataca muitas
suposições falsas que reforçam a desigualdade como uma parte inevitável do
desenvolvimento humano, que será lançado no próximo ano. Mas ele não estará por
perto para dar a forma lúdica de pensamento que ele sempre trouxe para nossa teoria
e prática enquanto ativistas. Pessoalmente, eu irei me lembrar de muitas vezes
que trocamos ideias, frustrações e planos quando nós dois morávamos em Nova
York — frequentemente na frente de um laptop no chão do apartamento dele no
complexo Penn South patrocinado pelo sindicato (David era um nova iorquino
orgulhoso, orgulhoso de suas raízes de classe trabalhadora) ou em um pequeno
restaurante na West 32nd Street onde David poderia satisfazer seu desejo
implacável por comida coreana. Lamento nunca mais fazer isso.
O que ainda temos são os livros – seus “filhos”, como ele os
chamava — e a oportunidade que eles nos dão de estudar o seu método, absorver
sua fé na auto-organização e na ajuda mútua, e tentar aplicar nós mesmos. E
assim eu condenso isso:
Observação. Paradoxo. Análise. Comunicação. Ação. E
ocasionalmente, tudo ao mesmo tempo.
Tradução > Brulego
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Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/10/22/eua-relembrar-david-graeber-pesquisador-desordeiro-e-amigo/
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
O legado militante de Malcolm X - Por Carlito Rovira
O legado militante de Malcolm X
Em 19 de maio de 1925, uma figura revolucionária admirável e
decidida nasceu em Omaha, Nebraska. Essa figura, que alcançaria destaque na
luta de libertação das massas afroamericanas, ficaria na história como Malcolm
X.
Malcolm era um dos oito irmãos, filhos de Louise Norton e
Earl Little. Earl era um ministro batista franco e seguidor do líder
nacionalista negro Marcus Garvey. Seu personagem desafiador chamou a atenção de
racistas brancos como Ku Klux Klan e a Legião Negra. Esses bandidos
frequentemente assediavam a família de Malcolm e, uma noite, sua casa foi
incendiada.
A década de 1920 foi uma década que os historiadores
burgueses descrevem como os “loucos anos 20”. Esta é uma glorificação falsa e
vã, considerando que este período de prosperidade capitalista significou algo
totalmente diferente para os afroamericanos – que foram vítimas de linchamentos
generalizados de turbas brancas e outras formas de terror racista.
Em 1929, a família de Malcolm mudou-se para Lansing,
Michigan, em busca de uma vida melhor e segura. Mas a família não conseguiu
escapar da violência racista. Earl Little foi assassinado, seu corpo mutilado e
encontrado sob um bonde. Malcolm X sempre afirmou que seu pai foi vítima de um
assassinato racista.
Este trágico evento teve um grande impacto na família de
Malcolm. Incapaz de lidar com as consequências emocionais da morte do marido e
as dificuldades financeiras envolvidas em criar os filhos sozinha, Louise
Norton sofreu um colapso nervoso e foi internada em uma instituição para
doentes mentais. O estado assumiu a custódia de todas as crianças e as colocou
em ambientes separados de adoção.
Malcolm era uma criança estudiosa com ambições de se tornar
advogado. Um dia, quando Malcolm expressou suas aspirações a um professor,
foi-lhe dito que nunca se tornaria advogado porque era negro. Essa experiência
com o racismo desiludiu Malcolm e o desencorajou de continuar os estudos.
Quando Malcolm era adolescente, ele foi para a cidade de
Nova York. Ele trabalhou como garçom por um período no famoso Small’s Paradise
Club no Harlem. Mas ele logo se tornou um intermediário para drogas,
prostituição e outros tipos de atividades ilegais.
Em 1946, ele e seu amigo mais próximo Malcolm “Shorty”
Jarvis se mudaram para Boston. Ambos foram presos e condenados por roubo logo
depois. Malcolm foi condenado a 10 anos de prisão.
A Nação do Islã
Foi na prisão onde Malcolm começou a se tornar político. Ele
conheceu a Nação do Islã, liderada por Elijah Muhammad. Malcolm foi atraído
pela organização muçulmana porque ela abordou a situação do racismo e pediu o
direito dos afroamericanos de ter seu próprio estado.
Malcolm se converteu ao Islã. Após sua libertação da prisão
em 1952, ele se tornou um membro dedicado da Nação do Islã (NOI). Foi nesse
ponto que ele optou por repudiar o sobrenome Little e, em vez disso, usar “X”.
Ele considerou o uso de nomes europeus parte do legado da escravidão. Os negros
receberam os nomes de seus senhores de escravos para estabelecer a propriedade.
Elijah Muhammad ficou muito impressionado com o talento
oratório e o carisma de Malcolm X. Malcolm provou ser um trunfo importante para
a organização muçulmana e se tornou um ministro graduado. A habilidade de
Malcolm de chamar a atenção de muitos com sua persona magnífica convenceu a
liderança a confiar a ele a tarefa de estabelecer mesquitas da NOI em outras
cidades dos Estados Unidos.
Muitos viram sua personalidade cativante e o poder de suas
imagens como superando a capacidade de persuasão de Elijah Muhammad. As pessoas
foram atraídas para as manifestações precisamente para ouvir Malcolm X falar.
Seus talentos contribuíram para o surpreendente aumento de membros da Nação do
Islã de 500 em 1952 para 30.000 em 1963, de acordo com a curadoria do espólio
de Malcolm X.
‘Nenhum homem deveria ter tanto poder’
Em um famoso incidente em 1957, antes de Malcolm X deixar a
Nação do Islã, um membro da NOI foi espancado pela polícia no Harlem e não recebeu
atendimento médico. Malcolm X demonstrou o poder de uma campanha popular
disciplinada ao levar membros da NOI para a delegacia. Eles ficaram em formação
em frente à delegacia.
Malcolm insistiu que o prisioneiro Black tinha direito a
cuidados médicos. Temendo uma possível rebelião por parte do número crescente
de residentes da comunidade encorajados pela liderança de Malcolm X, a chefia
da polícia concordou em obter atendimento médico para o detido. Milhares de
residentes do Harlem seguiram a ambulância da delegacia para o Hospital do
Harlem.
A polícia então ordenou que a formação muçulmana se
dispersasse. Malcolm com muita calma, mas com firmeza, explicou ao comandante
da polícia responsável que a multidão em posição de sentido não reconhecia sua
autoridade e não iria ouvir suas ordens.
Nesse ponto, depois de garantir que o homem espancado estava
sendo tratado, Malcolm fez um sinal com a mão. Com disciplina militar, os
muçulmanos deram meia-volta e marcharam para longe. O comandante da polícia foi
ouvido dizendo aos seus subordinados: “nenhum homem deve ter tanto poder”.
Em 1963, após o assassinato do presidente John Kennedy,
Elijah Muhammad instruiu seus seguidores a se absterem de fazer declarações
públicas. Ele estava preocupado que qualquer declaração inflamada pudesse ser
usada pelo governo racista dos EUA para reprimir a NOI. Mas Malcolm não
resistiu a demonstrar sua disposição para com os governantes.
Sua avaliação contundente – “as galinhas voltaram para o
poleiro” – era um sentimento generalizado nas comunidades mais oprimidas, que
haviam sido excluídas das conquistas dos Estados Unidos capitalistas brancos.
Kennedy foi morto pelos mesmos métodos violentos que a estrutura de poder
perpetra sobre os conquistados e oprimidos.
Mas foi um choque para amplas camadas da população branca,
desacostumada a uma avaliação tão calma e crítica da sociedade americana. A
declaração foi usada por uma mídia histérica para preparar uma campanha de medo
contra Malcolm e a Nação.
Política divergente
A declaração enfureceu a liderança da NOI. Elijah Muhammad
proibiu Malcolm X de falar publicamente por 90 dias.
Junto com essas questões organizacionais, as diferenças
políticas entre Malcolm X e Elijah Muhammad tornaram-se mais difíceis de
reconciliar.
O programa de Elijah Muhammad foi baseado na noção
conservadora de conciliação com o status quo. Ele procurou ganhar legitimidade
– mas não com base na participação e liderança para o surgimento rebelde dos
anos 1960. Ele procurou promover um conceito de capitalismo negro, onde a
comunidade afroamericana usaria a riqueza gerada para enriquecer uma elite
negra que poderia, em última instância, competir com o capitalismo racista dos
EUA em seus próprios termos – mas não competiria com ele até que a elite fosse poderosa
o suficiente.
Malcolm X, por outro lado, foi atraído pela militância do
movimento pelos direitos civis. Sua abordagem foi caracterizada por nenhum
compromisso com os opressores. Sua compreensão das profundezas do racismo nos
Estados Unidos o levou a concluir que o sistema atual era inerentemente hostil
aos interesses do povo afroamericano. A luta era necessária para enfrentar o
desafio. Em todas as questões relacionadas com a situação das massas negras,
ele nunca hesitou em ser crítico ao avaliar a crueldade da estrutura de poder
existente.
Em março de 1964, após muitas batalhas internas amargas,
Malcolm X rompeu seu relacionamento com a Nação do Islã. Ele fundou a Mesquita
Muçulmana, Inc. No mesmo ano, Malcolm viajou em peregrinação a Meca, na Arábia
Saudita. Entrar em contato com muçulmanos de diferentes raças, inclusive
brancos, foi uma experiência que mudou qualitativamente sua visão em relação às
relações raciais e à luta de libertação nos Estados Unidos. Pela primeira vez,
Malcolm viu um potencial para uma luta revolucionária com base em uma frente
única neste país. Após seu retorno, ele mudou novamente seu nome, para El-Hajj
Malik el-Shabazz.
Divisão de inflamação do governo
Malcolm X se tornou o alvo de uma série de tentativas de
assassinato, incluindo o bombardeio de 14 de fevereiro de 1965 em sua casa onde
vivia com sua família, Betty Shabazz e suas quatro filhas. Quando Malcolm
revelou publicamente o motivo de sua saída da NOI, o relacionamento com seus
ex-colegas tornou-se perigosamente antagônico.
A tremenda liderança e capacidade de Malcolm de projetar
esperança para as massas negras oprimidas estavam, sem dúvida, sob vigilância
cuidadosa pela polícia e agências de inteligência federais. Esse escrutínio
teria estado a todo vapor depois que ele se encontrou com o líder
revolucionário cubano Fidel Castro em 19 de setembro de 1960, no Hotel Theresa,
no Harlem.
Malcolm suspeitou que o FBI e a polícia o mantiveram sob
vigilância muito próxima, uma suspeita que se provou correta anos depois. Ele também
suspeitou que o governo estava inflamando as diferenças entre a NOI e sua
organização. Malcolm estava convencido de que estava sendo criado um cenário
que levaria a um atentado contra sua vida.
Em 21 de fevereiro de 1965, no Audubon Ballroom de Nova
York, três homens armados abordaram Malcolm enquanto ele falava no palco. Os
assassinos dispararam repetidamente suas armas à queima-roupa, tirando a vida
do amado e respeitado líder afroamericano.
Um exemplo de militância
Não há como dizer como as políticas e táticas de Malcolm
teriam se desenvolvido se ele não tivesse sido assassinado. Mas uma coisa é
certa: Malcolm X foi um revolucionário. Em toda a extensão de seu
desenvolvimento político, ele demonstrou uma qualidade de ódio feroz contra o
status quo do racismo e da opressão. Foi esse traço que o tornou um líder
militante e exemplar.
Seu impacto foi sentido muito depois de sua morte. Mais
notável, a linha política do Partido dos Panteras Negras foi fortemente
influenciada pelo nacionalismo negro desafiador e revolucionário de Malcolm,
bem como pelo marxismo-leninismo.
A luta que se seguiu dentro da Nação do Islã entre Malcolm X
e seus seguidores, por um lado, e Elijah Muhammad e elementos conservadores
mais burgueses, por outro, foi essencialmente uma luta entre forças que
buscavam uma direção revolucionária e aqueles que desejavam acabar com a
opressão imitando os opressores. Esse fenômeno sempre existiu nos movimentos de
setores socialmente oprimidos.
Malcolm morreu quando tinha 39 anos. Embora tenha vivido uma
vida curta, ele teve um impacto poderoso sobre os movimentos afro-americanos e
outros movimentos revolucionários nos Estados Unidos.
Em particular, comunistas de todas as nacionalidades e
outros que se esforçam para construir uma luta revolucionária unificada
aprenderam com seu poderoso exemplo de desafio contra a dura realidade do
racismo e da alienação. Eles aprenderam a necessidade de construir uma unidade
baseada no respeito pelo potencial revolucionário das massas afroamericanas.
Liberaration
News, traduzido por Vinicius Souza
Fonte: https://lavrapalavra.com/2020/10/12/o-legado-militante-de-malcolm-x/
quarta-feira, 14 de outubro de 2020
Ex-Pantera Negra, Jalil Muntaqim será solto após 49 anos de prisão nos EUA - OPERA MUNDI
Ex-Pantera Negra, Jalil Muntaqim será solto após 49 anos de prisão nos EUA
O ex-membro dos Panteras Negras Jalil Muntaqim, que está
preso há 49 anos nos Estados Unidos, será solto até o dia 20 de outubro.
Foi o que determinou o Conselho de Condicionais do Estado de
Nova York na última quarta-feira (23/09) após uma das muitas audiências que o
ativista tem comparecido desde 1998, ano em que pôde começar a pedir liberdade
condicional.
Segundo o jornal The Guardian, a justificativa dada
pelas autoridades foi a de que Muntaqim expressou "remorso" pelo
crimes cometidos e de que seu sentimento "era genuíno".
O ex-Pantera Negra, hoje com 68 anos de idade, foi preso em
1971, aos 19 anos, acusado de matar dois policiais durante um tiroteio no
bairro do Harlem, em Nova York.
Apesar de diversas evidências surgidas ao longo dos anos
apontarem sua inocência, Mustaqin ficou preso quase meio século e vinha tendo,
até essa semana, todos os seus pedidos de liberdade condicional negados.
À época da condenação, a principal testemunha, um outro
membro dos Pantera Negras chamado Ruben Scott, chegou a reconhecer que
incriminou Mustaqin e outros envolvidos na morte dos policiais após sessões de
tortura, o que não impediu que seu depoimento fosse validado e o pedido de um
novo julgamento pela defesa negado.
Além disso, um relatório balístico do FBI chegou a constatar
que a arma em posse do ativista no momento de sua prisão não correspondia aos
projéteis encontrados nos corpos dos policiais mortos. O parecer federal foi
substituído pelo da polícia de Nova York, que oferecia uma conclusão oposta.
Albert “Nuh” Washington e Herman Bell foram outros dois
militantes condenados no mesmo processo. Em 2000, Washington morreu de câncer
na prisão. Bell, por sua vez, conseguiu sua liberdade condicional em 2018, aos
70 anos de idade.
Revolucionário
Nascido em Oakland, Califórnia, filho de negros admiradores
do pacifismo de Martin Luther King, Mustaqin, que fora batizado como Anthony
Bottom, mas adotou outro nome após conversão para o islamismo, decidiu
ingressar no Partido dos Panteras Negras aos 17 anos de idade.
A organização revolucionária socialista, fundada no final
dos anos 1960, era então uma das principais referências da nova geração de
lutadores pelos direitos da população negra e trabalhadora dos EUA.
"Perdi qualquer esperança que os negros pudessem lutar
sem apelar à autodefesa, sem responder à violência policial e dos grupos
racistas. Ainda não tinha 17 anos, mas decidi me inscrever nos Panteras Negras,
para desgosto de minha mãe", contou o ativista a Opera Mundi no ano de 2016.
Após sua filiação, aceitou participar do braço armado dos
Panteras, mais tarde chamado de Exército Negro de Libertação (BLA, na sigla em
inglês).
Durante a prisão, o ativista se formou em Psicologia e
Sociologia, além de ter escrito romances e poemas. Mesmo encarcerado, Mustaqin
não deixou a luta social e se tornou uma das principais figuras pela libertação
dos presos políticos nos EUA.
Brecht, Walter Benjamin e o “novo ruim” - por Artur de Vargas Giorgi
Brecht, Walter Benjamin e o “novo ruim”.
Avanço do virtual, agora mais intenso, reforça a naturalização da vida: a ilusão de que o que ocorre é necessário e inevitável. Mas arte e técnica podem mostrar as entranhas da condição social e o mundo como construção precária e transformável
1. No ano de 1938, Walter Benjamin visita pela terceira vez o amigo Bertolt Brecht, que então vivia exilado em Svendborg, Dinamarca, um dos muitos lugares por onde o dramaturgo alemão passaria ao longo dos seus quinze anos de desterro, transitando entre a hospitalidade e a hostilidade.Benjamin em breve seria, como sabemos, o autor das teses
“Sobre o conceito de história”, últimos e incontornáveis escritos antes da sua
opção pelo suicídio, em 1940, como forma de escapar da violência da Gestapo
hitlerista. Não obstante, naquele ano de 1938, mais precisamente em 25 de agosto,
o que o filósofo anota em seu diário íntimo é algo muito conciso, em certo
sentido, algo mínimo.
Nessas páginas, onde Benjamin registra os debates, os
confrontos, as partidas de xadrez que, ao longo dos dias, mantém com Brecht,
encontramos lapidada, com efeito, em pouquíssimas palavras, “uma máxima
brechtiana”; máxima que propõe o seguinte: “não partir do antigo bom, mas do
novo ruim” (em Ensaios sobre Brecht).
Em tamanha concisão, hoje nada seria mais preciso e urgente.
É como se fôssemos tomados por um eco do passado dirigido às emergências do
nosso presente. Quer dizer, somos interpelados por uma exigência cifrada há
mais de 80 anos, sob a ameaça do nazifascismo, exigência que permanece neste
nosso presente destemperado e pungente, ameaçado pelas formas contemporâneas do
autoritarismo.
2. O novo ruim: eis de onde devemos partir, para
que não seja normalizada, sem mais, a catástrofe do “novo normal”. Esta seria a
posição crítica a ser adotada nestes tempos que, imagino, teriam colocado
Benjamin diante de impasses inauditos a respeito da amplitude assumida pela
reprodutibilidade técnica; tempos que, nesse sentido, ainda, parecem pedir o
reforço não só de nossas capacidades de compreensão das técnicas, mas,
sobretudo, de um gesto caro a seu amigo e parceiro de xadrez: um gesto que
muitas vezes é chamado de distanciamento, ou estranhamento.
Sabemos que Benjamin não recuava perante as mais avançadas
tecnologias do seu tempo. Além de postular que um posicionamento político e
estético antifascista deveria ser alcançado não com o rechaço, mas sim,
justamente, por meio das técnicas modernas de reprodução
(principalmente o cinema), Benjamin foi, ele mesmo, entre o final dos anos 1920
e o início da década de 1930, um speaker em rádios alemãs, falando a
crianças e jovens sobre assuntos nada distantes dos seus ensaios mais
exigentes.
Brecht não destoava dessa posição em seu pensamento crítico
sobre o teatro. Palavras de Benjamin: “As formas do teatro épico correspondem
às novas formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está situado no ponto mais
alto da técnica”.
Com efeito, o dramaturgo propunha que a superação da
identidade emocional entre o público e as ações encenadas, ou ainda, que a
interrupção das prescrições miméticas e catárticas do teatro clássico
“naturalista” deveria ser alcançada não fora ou para além do teatro, mas pela
mobilização radical dos seus próprios recursos e artifícios. Assim, o teatro
deveria interpelar o público ao expor o mundo humano como uma construção
contingente, portanto passível de transformação, ao mesmo tempo em que deveria
se expor, ele mesmo, como construto, como técnica de exposição.
3. O título de um poema de Brecht sintetiza bem essa
operação – “O mostrar tem que ser mostrado” – e seus versos dão contorno ao
programa do teatro épico:
[…]
Eis o exercício: antes de mostrarem como
Alguém comete traição, ou é tomado pelo ciúme
Ou conclui um negócio, lancem um olhar
À plateia, como se quisessem dizer:
Agora prestem atenção, agora ele trai, e o faz deste modo.
Assim ele fica quando o ciúme o toma, assim ele age
Quando faz negócio. Desta maneira
O seu mostrar conservará a atitude de mostrar
De pôr a nu o já disposto, de concluir
De sempre prosseguir. […]
Assim como Benjamin, Brecht sabia que na modernidade o
problema da arte confina com o problema da política porque, para ambas, a
exposição mediada pelas técnicas é decisiva. Obras de arte, artistas, públicos
e políticos – todos compartilham, desde então, os mesmos espaços de exposição;
todos se medem, cada vez mais, com as técnicas de reprodução, isto é, com as
mediações que montam e desmontam, que modulam, compõem e recompõem o mundo que
eles compartilham e disputam.
E se, a priori, o teatro pareceria escapar a esse
destino, pelo fato de se valer de atores que confrontam o público diretamente e
de cenas – por assim dizer – sempre originárias, desempenhadas sem edição, o
que o teatro épico de Brecht propõe se aproxima, sim, da transformação causada
pelo cinema na exposição de atores e políticos, igualmente. Pois vale para o
teatro épico o que Benjamin escreveu a respeito da técnica cinematográfica:
“Seu objetivo é tornar ‘mostráveis’, sob certas condições sociais, determinadas
ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las”.
Ao romper com o ilusionismo da cena, com seu andamento
supostamente natural, Brecht faz intervir o teatral, vale dizer, o caráter
artificial, não só do teatro, mas também das condições sociais, dessa nossa
“realidade”, que tantas vezes é vista como necessária e inegociável. E com isso
seu teatro afirma que, na arte como na política – nos modos da representação e
nos meios da representatividade –, se o objetivo é a transformação da vida em
comum, é preciso, então, não apenas mostrar; na mesma medida é necessário
mostrar que se mostra, mostrar-se. Expor as formas de exposição: o que está em
jogo com esse gesto é, não a reprodução do que já é vivido, mas a produção de
formas de vida ainda possíveis.
4. As fundamentais medidas de preservação da vida – de
toda vida – deveriam ser, estas sim, absolutamente inegociáveis. Mas, para
muito além dessa conduta de fato ética, o chamado “novo normal”, entre outros
aspectos muito problemáticos, apresenta-se, notadamente, como normalização da vida
virtual. E se tampouco em nossos dias as respostas devem ser buscadas na recusa
das técnicas mais avançadas, essa normalização definitivamente é algo que
deveria ser submetido a uma crítica severa e constante.
Respostas políticas e estéticas afirmativas de uma vida
comunitária somente serão possíveis com a exposição e o exame da realidade
produzida pelas técnicas. Nesse sentido, é preciso mostrar que, em geral, a
atual naturalização da virtualidade parece não reforçar a compreensão da
contingência do mundo humano, ou seja, da possibilidade de transformá-lo. Ao
contrário, parece cristalizar uma suposta certeza, sem dúvida arrogante: a
certeza de que tudo que se dá é necessário, obrigatório, inevitável. Trata-se
de uma lógica conservadora que, não raro, é perversamente associada ao discurso
do progresso, do avanço, da evolução etc.
Afinal, conhecemos bem o elogio dos fluxos desimpedidos; o
elogio da comunidade global sem hierarquias; da revolução dos conteúdos, dos
afetos e das identidades; o elogio das novas formas de intimidade; do acesso e
da autonomia usuária a qualquer hora e da entrega em casa just in
time. Conhecemos, em suma, essa forma de apropriação que capitaliza a
energia transformadora do mundo e limita nossas ações à escolha entre produtos
e serviços (zoom, meet, facebook, instagram…), evitando assim as
questões mais urgentes, que na verdade são as mais básicas.
O mundo virtual não reforça formas de exclusão? Que tipo de
trabalho o sustenta? Quem gerencia as informações das plataformas e redes sociais?
O que fazem com esses dados? A vida nos espaços públicos se intensifica? As
demandas coletivas se reforçam? Essa estranha intimidade distanciada e exposta
produz novos sujeitos? Em que medida essas formas de subjetivação nos
interessam? É um problema a exposição da intimidade de muitos gerar lucro para
pouquíssimos? E, para além da exposição, a virtualidade de fato intervém nas
partilhas do mundo? Ela favorece, efetivamente, a produção de novas condições
sociais, de realidades alternativas mais igualitárias?
As respostas devem ser matizadas: às vezes sim, às vezes
não, em outras vezes, parcialmente. Seja como for, são perguntas como essas
que, a meu ver, devem orientar, por exemplo, o debate sobre o uso na educação –
e sobretudo na educação pública – de plataformas privadas ligadas ao mercado do
chamado big data, assim como devem orientar a discussão sobre o fato de,
hoje, cada usuário online ser “automaticamente” um produtor e, ao
mesmo tempo, um consumidor de conteúdos.
Esse trabalho imaterial, segundo Peter Pál Pelbart, é
uma das definições do mundo virtual. E responder criticamente a ele não é uma
tarefa simples, já que através desses fluxos virtuais formatamos nossos gostos,
condutas, sonhos, opiniões – nossos afetos. Como escreveu o autor em A
vertigem por um fio, produzimos e consumimos “cada vez mais maneiras
de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, ou
seja, formas de vida”. Daí a complexidade da situação.
5. Apesar das diferenças sobre os modos do
posicionamento político-partidário (bem sinalizadas em Quando as imagens
tomam posição, de Georges Didi-Huberman), Benjamin e Brecht demarcaram em torno
das técnicas de reprodução e exposição o ponto da crise, da crítica e da
criação.
No teatro épico, o público deixa de ser um espectador: ele é
chamado a atuar, pois deve avaliar e tomar decisões sobre o que é mostrado. O
homem e a sociedade são confrontados pela investigação que os afasta do
conhecido, do que seria “natural”. Nada mais próximo de Benjamin, que afirmava
que através do cinema a realidade podia ser vista como uma segunda natureza:
produzida como uma flor azul no jardim da técnica.
Claro, somos desde o início criaturas prometeicas, ou seja,
fomos e somos algo como deuses, mas com próteses, como sugeriu Freud em O
mal-estar na civilização. Por isso, diante desse nosso mal-estar, diante
do novo ruim, talvez a estratégia seja reforçar a exposição da nossa
natureza de segunda ordem: nossa natureza técnica.
O mundo virtual não deixa de ser um imenso palco, uma cena
montada, produtora de inúmeros efeitos reais. Não podemos naturalizar essa
condição. Se não conseguirmos expor os artifícios que criamos e que também nos
criam, não conseguiremos criticá-los, compreendê-los e controlá-los.
Benjamin escreveu que, no teatro de Brecht, o palco ainda
ocupa uma posição elevada. Mas com uma diferença fundamental: em sua elevação,
o palco já não tem nada de sublime, mágico ou extático. O que nele se
desempenha é o estranhamento do mundo que até agora construímos. Quem sabe
desse estranhamento resulte uma tomada de posição que coincida com a
interrupção dos acontecimentos e com a sua leitura a contrapelo. Afinal, esse
mundo estranho é o mundo ordinário, o nosso mundo humano de todos os dias. Um
mundo de próteses e técnicas, artes e artifícios que é, sim, contingente.
Modificar esse mundo profundamente é o papel dos atores de hoje.
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/brecht-walter-benjamin-e-o-novo-ruim/
terça-feira, 13 de outubro de 2020
O contrato de vassalagem e a cegueira estratégica dos militares - por José Luis Fiori
O contrato de vassalagem e a cegueira estratégica dos
militares
Na verdade, é a insegurança generalizada e crescente em que
se debate, agoniada a humanidade de hoje, o ópio venenoso que cria e alimenta
estas hórridas visões, capazes, entretanto, de se tornarem uma realidade
monstruosa.
Golbery do Couto e Silva, Conjuntura, Política Nacional, o Poder Executivo
& Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2ª ed. 1981,
p. 9.
***
Nunca houve consenso ideológico dentro das Forças Armadas brasileiras, e sempre
existiram militares que foram democratas, nacionalistas e comunistas. O mais
famoso talvez tenha sido o capitão Luiz Carlos Prestes, que participou do
“movimento tenentista” dos anos 20 e da “Revolta dos 18 do Forte” de
Copacabana, e depois liderou – ao lado do Major Miguel Costa – a famosa Coluna
que marchou pelo Brasil, durante 2 anos e 5 meses, antes de ser derrotada,
defendendo a justiça social, a universalização do ensino gratuito e a adoção do
voto secreto nas eleições brasileiras. E mesmo depois da Segunda Guerra
Mundial, houve muitos que se opuseram aos golpes de Estado de 1954, 55, 61 e
64, e que tiveram participação importante na luta pelo monopólio estatal do
petróleo e pela criação da Petrobras. Mais do que isto, sempre houve militares
que defenderam a centralidade do Estado no desenvolvimento econômico e la luta
contra a desigualdade social do Brasil.
Mesmo assim, não há dúvida de que a grande maioria dos oficiais brasileiros,
sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, foi sempre conservadora e de
direita, golpista e partidária da submissão militar do Brasil aos Estados
Unidos. E foi essa tendência majoritária e conservadora que sempre venceu e se
impôs, dentro e fora das FFAA, em todos os momentos cruciais da história
política brasileira dos últimos 80 anos. E agora de novo, foram eles que
venceram com o golpe de Estado de 2016 e a instalação do atual governo; e foram
eles que reestabeleceram a vassalagem militar do Brasil com relação às Forças
Armadas e à política externa dos Estados Unidos. Por isso cabe perguntar-se: em
que consiste exatamente a “vassalagem moderna” entre Estados nacionais
soberanos? Qual é a aposta ou expectativa dos militares brasileiros, depositada
neste tipo de relacionamento com os Estados Unidos, e mais recentemente, também
com relação a Israel? E sobretudo, quais as consequências de curto e longo
prazo, desta relação de vassalagem, para o Estado e a sociedade brasileira?
Do ponto de vista estritamente contratual, os acordos modernos de vassalagem
militar garantem ao “Estado-vassalo” a venda de armas e munições mais
sofisticadas, e de algumas “tecnologias de ponta” controladas pelo
“estado-suserano”, em troca de recursos e minerais estratégicos do país
vassalo, e da cessão de suas tropas para as guerras da potência dominante. E
emm muitos casos, esse contrato também envolve – como na Colômbia – a cessão de
território para instalação de soldados e bases militares norte-americanas. No
período da Guerra-Fria, essas armas foram entregues ao Exército brasileiro para
combater os “países comunistas”. Mas hoje não está claro quem seja o inimigo
brasileiro, e o que pretendem fazer suas Forças Armadas com este armamento mais
sofisticado e destrutivo que receberão dos Estados Unidos. Contra quem
pretendem utilizá-las? Se for contra as Grandes Potências, serão inúteis porque
elas dispõem do poder atômico que o Brasil não tem, mas se for contra seus
vizinhos sul-americanos, isto acabará provocando uma corrida armamentista no
continente, uma vez que não se pode supor que os outros não façam o mesmo que
no Brasil. E quem pode sair ganhando com a transformação da América do Sul num
grande comprador de armas? E qual o custo dessa loucura para um continente que
já é pobre e que sairá ainda mais pobre da atual pandemia do coronavírus? Neste
sentido, cabe perguntar aos militares brasileiros se eles já fizeram este
cálculo, e se eles têm clara a herança que deixarão para seus filhos e netos, e
sobretudo para a grande maioria dos brasileiros que não são militares e que não
têm nada a ver com essas armas que lhes serão financiadas e favorecidas em
troca de sua vassalagem?
Mas além disto, a expectativa de todo “Estado vassalo” é obter também vantagens
econômicas de sua vassalagem, sob a forma do livre acesso aos mercados e
investimentos da “potência-suserana”. Foi assim que de fato, durante a Guerra
Fria, em particular entre 1950 e 1980, a vassalagem brasileira foi compensada
pelo apoio norte-americano ao projeto desenvolvimentista dos militares
brasileiros daquela época. E neste sentido se pode dizer, inclusive, que o
chamado “milagre econômico” da ditadura militar” foi uma espécie de réplica
latina do “desenvolvimento a convite” da Coreia, de Taiwan, do Japão ou mesmo
da Alemanha, e de quase toda a Europa que foi favorecida pelo Plano Marshall.
Essa situação, no entanto, não se repetiu em lugar nenhum do mundo depois da
década de 80, quando os Estados Unidos abandonaram sua estratégia econômica
internacional do pós-Segunda Guerra inaugurada pelos acordos de Bretton Woods,
de 1944, e adotaram sua nova estratégia de desregulação e liberalização
selvagem dos seus mercados periféricos, que foi experimentada depois do golpe
militar chileno de 1973, mas que só chegou ao Brasio na década de 90. E agora,
mais recentemente, a expectativa de que os Estados Unidos possam ajudar o
desenvolvimento econômico de seus “vassalos”, já na terceira década do século
XXI, não tem pé nem cabeça. Neste momento, a economia americana está sendo
atropelada pela “crise epidêmica”, mas mesmo antes disto, o governo de Donald
Trump já havia adotado uma política econômica “de tipo nacionalista”, com a
proteção de seu mercado interno e de sua indústria, e com a defesa
intransigente de seus produtores de grãos e alimentos, que concorrem diretamente
com o agro-business brasileiro.
Assim mesmo, é impossível imaginar um governo que seja mais subserviente e
lambe-botas de Donald Trump que o atual governo brasileiro. No entanto, nos
últimos dois anos, o Brasil não logrou nenhum acordo comercial significativo
com os Estados Unidos e não obteve nenhuma vantagem ou favorecimento especial
do governo norte-americano. Pelo contrário, o Brasil já foi objeto de várias
retaliações e humilhações econômicas do governo Trump, sem que tenha dito uma
só palavra de protesto ou defesa de seus próprios interesses nacionais. E para
além dos Estados Unidos, o Parlamento Europeu rejeitou recentemente o acordo
comercial que havia começado a tramitar, entre a União Europeia e o Mercosul,
como forma de retaliação explícita contra o o governo do Sr, Bolsonaro. E para
culminar, nos últimos 12 meses, a fuga dos investidores privados estrangeiros
do Brasil mais que dobrou, não havendo nenhuma expectativa de reversão dessa
tendência que, pelo contrário, deve piorar ainda mais. Por tanto, até agora, a
nova vassalagem militar do Brasil não trouxe nenhuma vantagem econômica, nem de
mercados abertos nem de investimentos
Os bufões do atual governo não entendem nada de economia, nem sabem o que seja
o capitalismo. Mas o mais grave é que seus militares não também não consigam
entender que seus novos aliados econômicos – diferentemente do período da
Guerra Fria – são financistas; e que, no capitalismo contemporâneo, os
financistas não necessitam do crescimento econômico do PIB, para aumentar seus
lucros e acumular sua riqueza privada. Basta dizer que nos últimos cinco meses
em que a pandemia do coronavírus destroçou a economia mundial, a riqueza
financeira do mundo cresceu 25%, para mais de US$10 trilhões, e o patrimônio
dos 42 maiores bilionários brasileiros, quase todos financistas, cresceu US$34
bilhões. E enquanto os militares do governo não entenderem este aparente
paradoxo capitalista, nem conseguirem perceber que sua vassalagem contemporânea
não lhes trará vantagens econômicas, eles seguirão se debatendo para controlar
este governo” que ajudaram a criar, que consegue ter, ao mesmo tempo, um
chanceler que ataca a China e a globalização econômica, enquanto seu ministro
de economia aposta todas as suas fichas exatamente na China e na globalização.
Por último, a “relação de vassalagem” moderna envolve também compromissos e
consequências estratégicas que não aparecem explicitados nos acordos militares.
Por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, as FFAA brasileiras não
precisaram mais escolher seu “inimigo externo”, que passou a ser definido
diretamente pelos Estados Unidos. E durante toda a Guerra Fria, esse “inimigo”
foi a União Soviética, que não tinha o menor interesse nem a menor
possibilidade de atacar o Brasil, um país que estava inteiramente fora do
“jogo” das grandes potência”. Além disso, esta estranha condição de “inimigo do
inimigo dos outros” criou uma distorção permanente no comportamento do Exército
brasileiro, que se transformou numa polícia especializada no combate aos
“traidores internos”, ou seja, para começar, todos aqueles que divergissem da
posição norte-americana e da vassalagem militar brasileira. Foi assim que
nasceu a figura do “inimigo interno”, criada pela Doutrina de Segurança
Nacional formulada na década de pela Escola Superior de Guerra, imediatamente
depois da assinatura do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, de 1952. E foi
graças a essa verdadeira “cambalhota funcional” que as FFAA passaram a espionar
seu próprio povo, na busca constante e obsessiva do “ópio venenoso” e das
“hórridas visões” que estariam ameaçando a paz interna da sociedade e do estado
brasileiro, segundo as palavras do General Golbery do Couto e Silva, citadas na
epígrafe deste texto. E foi assim que nasceu e se consolidou historicamente a
relação direta entre a “vassalagem internacional” do Brasil e o “autoritarismo
nacional” das suas Forças Armadas, que passaram a denunciar como “inimigos” do
Estado todos aqueles que discordassem das suas próprias posições ideológicas, e
da sua cegueira estratégica.
Esta distorção das Forças Armadas explica porque depois da Guerra Fria, e
durante o período da uni-polaridade americana, os militares brasileiros
perderam sua bússola e ficaram sem inimigos claros durante quase vinte anos. E
quando tentaram definir um “inimigo externo” por sua própria conta, escolheram
a França[1], o que é pouco menos que ridículo, uma
vez que ela é hoje apenas uma potência intermediária declinante, que mal
consegue exercer alguma influência no norte da África e que, ainda por cima, é
adversária do governo venezuelano que os militares brasileiros tanto odeiam. E
como consequência, para recriar o seu o “boneco de pancada” ou “inimigo
interno”, tiveram que recorrer a uma invenção esdrúxula da ultradireita
norte-americana: um tal de “marxismo cultural”, que eu ninguém sabe o que seja,
mas que serviu para os militares brasileiros demonizarem todos os “movimentos
identitários”’ e “politicamente corretos”, e em particular, a um ex-presidente
da República, seu partido e seus militantes, apesar deles serem uma peça
essencial de todo e qualquer jogo democrático.
Esta confusão se mantem até hoje, mas o quadro alterou-se radicalmente no
momento em que o presidente Donald Trump elegeu o novo inimigo externo dos
Estados Unidos, em 2019, ao declarar sua guerra comercial e tecnológica contra
a China, e ao tentar polarizar o mundo em torno de seu contencioso com os
chineses. O problema, entretanto, é que no momento em que Donald Trump mudou
sua política externa, o Brasil já tinha se transformado numa economia
primário-exportadora dependente dos mercados e investimentos chineses, e está
cada vez mais difícil de transformar em inimigo estratégico do Brasil, o país
que é precisamente o seu principal parceiro econômico. Além disso, como os
chineses são pragmáticos e não se propõem a converter ninguém, fica ainda mais
difícil transformar os admiradores da China em “inimigos internos” do estado brasileiro,
como aconteceu com os comunistas durante a Guerra Fria.
No meio dessa “barafunda” ideológica e política, e do caos econômico que se
acentua a cada momento que passa, o homem comum se pergunta o que afinal tem a
dizer e propor os militares brasileiros com relação aos milhões de brasileiros
que hoje vegetam na miséria e na fome dos campos e das grandes cidades do país,
e que reclamam e protestam porque têm fome, mas não são “inimigos” do Estado
brasileiro, nem muito meos de suas Forças Armadas ?
E aliás, quem deu a estes senhores o direito, e de onde vem sua arrogância de
querer julgar e decidir quem são os bons, e quem são os maus brasileiros ?
13 de outubro de 2020
***
José Luis Fiori é Professor permanente de Economia Política Internacional do PEPI/UFRJ.
*Este artigo complementa nosso último texto sobre “A
lenta construção de um ‘Estado vassalo’ e o papel dos militares brasileiros”,
publicado em Carta Maior em 30 de setembro de 2020.
[1] “Elite militar brasileira vê França
como inimiga nos próximosm20 anos”, Folha de São Paulo, 10/02/2020
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-contrato-de-vassalagem-e-a-cegueira-estrategica-dos-militares/4/48988
Memória combativa: A Batalha da Praça da Sé – por A.N.A.
Memória combativa: A Batalha da Praça da Sé
07/10/1934
Na época, o fascismo estava em ascensão/ Sete de outubro, um domingo então/ Em uma praça, milhares de integralistas/ Jurariam fidelidade ao líder fascista/ Em nome da vida e da liberdade/ Armas na mão e cabeças erguidas/ Membros da frente antifascista/ Resolveram que o evento seria impedido/ Fascistas e policiais, começaram a atirar/ Tentando debandar os manifestantes/ Mas veio dos prédios à volta do lugar/ A resposta que os fascistas não estavam a esperar/ Fuzis e espingardas começaram a atirar/ Integralistas a correr por todo lugar/ Sangue nacionalista espalhado pelo chão/ A luta antifascista uma vitória então./
Música & Letra Execradores.
Na defesa da Vida e da Liberdade
Viche! Na defesa da liberdade muita luta, mas muita luta já rolou e tá rolando nesta guerra social! É com grande esforço que se logra pequenos respiros de liberdade que afinal nem de longe possuem do brilho da LIBERDADE. Rodeados de propriedades, deveres, leis, instituições que cobiçam dominar a sociedade, tiranos de todas as cores, a luta se põe como a vida é, feroz.
Nos vendavais e mudanças de tempo que estamos envoltos dentro da Guerra Social, desenham-se, dentro das infinitas possibilidades, situações duras com horizontes sombrios. As ascensões de movimentos fascistas e reacionários assim são sentidas por todos os seres que mantém um firme apego pelo valor da liberdade, pela beleza da diversidade da vida em suas expressões e sente a constante necessidade em defendê-la.
Os anarquistas e suas experiências têm marcado suas trajetórias com sua firme ação de combate contra toda forma de poder, de autoridade, de dominação. São por sua natureza, provocadores de práticas de auto organização dos rumos da vida assim todo o governo, máfias e instituições que o sustentam, o estado em si, se impõe como tirano e é um inimigo. Nestas trajetórias dentro da constante luta social contra as opressões lá estavam anarquistas e suas iniciativas declarando “Paz entre nós guerra aos senhores”; não lhes parecendo oportuno trocar um senhor por outro, assim, constantemente na busca pela anarquia, as forças anarquistas, além de lutarem contra os opressores de plantão e seus lacaios, se opuseram a todos os grupos que na guerra social lutavam contra o poder pelo poder, mesmo alegando querer transformá-lo radicalmente.
Pequenos e grandes tiranos
E quantos são os que querem dominar? Tantos! Quantos são os que impõe sua verdade? Caramba! Os ricos e seu modo de vida, as religiões, facções políticas (partidos), criminosas, milícias, são destaque neste elenco junto aos falsos críticos do sistema. Os anarquistas posicionam-se contra todos tiranos e seus bajuladores.
Assim Bolsonaro como Lula são tiranos, distintos, mas tiranos! Plínio Salgado como Luís Carlos Prestes[1] foram durante suas vidas pequenos tiranos, que sonharam em “ser um grande tirano”, foram distintos, mas pequenos tiranos!
Nos anos 30 surgiu no Brasil um movimento fascista organizado transformando-se em um partido, a Ação Integralista Brasileira (AIB), nacionalistas com uma doutrina própria, o Integralismo, que foi a encarnação de valores de dominação e submissão que toma distintas faces ao longo dos tempos. Com seu explícito valor autoritário onde se declaram saberem o que é bom para a vida de todos esforçam-se em se impor como “o” caminho para a vida coletiva com seus valores de deus pátria família. Um pesadelo para diversidade humana. Como não poderia ser diferente movimentos que são compostos por gente que não pensa e se articula por sua própria cabeça, guiados por ordens, necessitam de um líder. Elemento fundamental das expressões do fascismo o culto a uma personalidade[2] como a Mussoline, Salazar ou Franco, os integralistas cultuavam uma, Plínio Salgado, fundador da doutrina e do partido.
A AIB se espalhou rapidamente por todo Brasil formando grandes agrupamentos integralistas organizados de forma hierárquica e paramilitar. Promoviam desfiles nas ruas com estandartes com a letra grega do sigma, todos uniformizados com uma fantasia verde de estilo militar. Nas regiões de colonização italiana e alemã ao sul do Brasil tiveram forte penetração. Nas páginas de jornais inimigos do fascismo os integralistas se tratavam de “bandos de assassinos pastoreados por Plínio Salgado”, “gente fantasiada de verde”.
Por estas épocas, década de 30, o estancieiro de São Borja Getúlio Vargas havia tomado o poder do governo federal canalizando o fervor de intensas e reprimidas tensões por transformações sociais bradadas nos anos 20. Tornando-se assim chefe de um governo provisório que se espichou por quatro anos através da política (trapaças e manobras), da guerra[3], da repressão[4], da institucionalização dos sindicatos perseguindo quem animava as organizações autônomas dos trabalhadores. Peça importante de seu sucesso foi a criação do ministério do trabalho com o discurso da conciliação de classes para o bem do Brasil, foi esta a tese fundamental do trabalhismo, o qual se manifesta na política parlamentar até hoje pelo engodo aplicado pelo PTB, PDT, Avante, Podemos, PRTB[5] , PTC, Solidariedade.
Getúlio Vargas simpático aos movimentos fascistas no mundo e no Brasil manteve seu próprio estilo autoritário e populista, sendo proclamado como o “pai dos pobres”. Antes de lançar o Brasil na segunda guerra mundial contra as forças nazi-fascistas manteve aproximação com Mussolini, Hitler, e até 1937 com Plínio Salgado, ilegalizando totalmente os seguidores de Plínio com a frustrada tentativa integralista de ataque ao palácio presidencial.
Porém em 1934 a interação entre as forças integralistas e o governo de Getúlio Vargas era explícita deixando toda a extensa órbita de antifascistas em alerta. Com a aprovação do uso de seus uniformes pelo Ministério da Guerra os integralistas passam a realizar grandes desfiles nas ruas de cidades como Rio de Janeiro, Niterói, Salvador, Recife, Belo Horizonte. Getúlio acariciava os integralistas talvez os quisessem como tropa de choque contra a população papel o qual não tiveram força para assumir.
Pelo mundo a crise da burguesia capitalista internacional em 1929 reverberava sua ressaca sobre os povos da Terra. Na Rússia uma revolução social ocorrida em 1917 transforma-se em ditadura de um partido com filiais por toda terra (PC’s). Muitos países viviam a ascensão de movimentos pró-fascistas. É quando as perspectivas da vida social se deterioram de forma acentuada que parte da manada humana, domesticada pelo chicote da dominação, entende ser hora de apertar ainda mais o reduzido espaço de liberdade, afunilando as liberdades conquistadas a sangue buscando impor regimes severos de maior controle e violação da vida.
Anarquistas
Os anarquistas, duramente perseguidos no fim dos anos 20 com deportações, prisões, anulação de jornais e companheiros mortos na Colônia Penal de Clevelândia do Norte fruto da mão governamental e seus aparatos repressivos frente às revoltas de 1924 em hostilidade contra o governo de Arthur Bernardes, as agitações contra a lei celerada e a lei de imprensa que fechou A Plebe e muitos outros jornais em 1927, e ainda os massivos protestos pela libertação de Sacco e Vanzetti Os anarquistas buscavam articular-se diante dos novos horizontes da realidade do dia-a-dia.
É importante recordar também a destemida campanha antifascista desenvolvida pela anarquista Maria Lacerda de Moura desde o fim dos anos 20 provocando com seus artigos nos jornais uma repulsa contra o fascismo tão grande que a sede do jornal fascista de São Paulo Il Piccolo fosse apedrejada, destruída e incendiada por uma multidão enfurecida com sua propaganda de louvação ao fascismo. Maria Lacerda de Moura não descansa, dá conferências ao longo dos anos no Rio de Janeiro, Santos, Campinas, Sorocaba, Buenos Aires, escreve artigos em jornais e inúmeros livros de combate ao fascismo.
Em São Paulo retoma-se a publicação do jornal A Plebe, em 1932, tornando-se como antes em expressiva voz anarquista impressa em jornal. É especialmente pelas folhas de A Plebe[6] que percebemos a vida ativa dos anarquistas e suas iniciativas. É também em São Paulo em 1933 que anarquistas abrem o Centro de Cultura Social (CCS) com intuito de ter um espaço coletivo de portas abertas, ponto de encontro, local de conferências e apresentações teatrais. Destacando-se como reduto anarquista, antifascista, hostil aos camisas verdes e demais uniformizados.
Muitas e concorridas foram as apresentações teatrais e conferências sobre variados temas ocorridas no CCS e foi após atividades destas quando quem concorria nelas e saia as ruas em grupos que se desenrolavam enfrentamentos com fascistas e policiais. Num enfrentamento destes, após uma conferência antifascista o anarquista Agostino Farina foi ferido a bala na perna em uma situação cheia de versões que parece ter sido uma emboscada da polícia e dos integralistas, sendo preso junto a mais uma dezena de companheiros pelas forças da ordem. Farina no momento portava uma garrucha, farta munição e um punhal.
Outro reduto anarquista foi a Federação Operária de São Paulo (FOSP) composta por sindicatos que se mantinham firme em sua posição autônoma, pela ação direta, desatrelada a partidos políticos e a luta parlamentar mantendo-se em pé de guerra contra as forças que visavam dominar e orientar o rumo do movimento organizativo dos trabalhadores. Destacava-se seu rechaço ao Ministério do Trabalho, negavam-se ao uso da carteira de trabalho declarando ser ela uma forma de controle sobre quem trabalha.
São os anarquistas próximos destas iniciativas que animam e protagonizam os acontecimentos da Batalha da Praça da Sé, muitos anonimamente, outros recordados nas memórias, nas páginas de jornais ou autos policiais que o tempo deixou escritas. E lá estavam: João Perez, Natalino Rodrigues, Pedro Catalo, Manoel Marques Bastos, Simon Radowitsky, Edgar Leuenroth, Antonio Martinez, Rodolfo Felipe, Gusmão Soler, Herminio Marcos Hernandez e tantos mas tantos anônimos.
Os anarquistas são antifascistas na mesma medida que são contra toda e qualquer forma de governo e exploração, como a democracia combinada a ditadura do capital ou uma ditadura de um partido como o fez o partido comunista e governos nazi-fascistas em algumas partes do mundo, monarquias e toda forma de subjugação da vida. Assim como os anarquistas vão se unir com os pretensos senhores para lutar contra outros pretensos senhores que desfilaram na praça. Só a luta decide.
Um mês antes da Batalha da Praça da Sé, Plínio Salgado parte em excursão pras bandas do sul, passando pelo Paraná, Santa Catarina e em Porto Alegre no dia 11 de setembro realiza “estrondoso” comício no Cinema Navegantes. Os anarquistas se fizeram presentes e “lançaram bombas de parede”, “inofensivas e barulhentas”, “corre-corre e apagar luzes”, quando acenderam as luzes após as explosões Plínio Salgado estava escondido de baixo da mesa da presidência da conferência[7].
A Batalha da Praça da Sé
Os integralistas chamaram para um grande desfile de juramento e fidelidade ao seu líder comemorando dois anos de seu movimento. Já haviam feito um chamado semelhante mas cancelaram pois viram que os que desprezam seus valores totalitários estavam a postos e haviam marcado um ato para o mesmo local e hora. Porém desta vez no dia 7 de outubro de 1934 não cancelaram seu desfile mesmo com a demonstração imediata de firme oposição. Foram varridos a bala, fugiram descamisados da praça pública.
O dia 7 de outubro contou com um enxame de gente antifascista de todas as tendências. A marcha dos integralistas era um grande insulto e também uma provocação, uma ameaça a todos que tem um mínimo apego pela liberdade. Os aferrados em organizações, muito antes desta batalha, trataram de formar uma frente única contra o fascismo. A sugestão da frente única surgiu por parte daqueles que almejam dirigir as “massas” se sentem iluminados e a frente intelectualmente dos outros, são a vanguarda . Os anarquistas não aderiram às formalizações da frente única, somente no campo de batalha no alvo de seu rechaço. Na memória de um comunista que lá estava foi no campo de batalha, na Praça da Sé, que os anarquistas na luta se cobriram de glória, se batiam como leões.
Manuel Marques Bastos, anarquista então veterano, declara em 1969 em entrevista a Edgar Rodrigues: “Fazia parte de nosso plano atacar a parada com um bonde dinamitado que seria empurrado na direção das tropas integralistas quando em sua marcha atingissem um determinado ponto, destroçando assim os 10 mil homens e pondo-os para correr.” Declara ainda que caguetes do PCB informaram a polícia sobre as intenções dos anarquistas .
Antonio Martinez, anarquista, esteve lá, e compartilhou suas memórias com jovens anarquistas relatando belas passagens deste confronto. Estas memórias nos dizem que a polícia armou metralhadoras em tripé entrincheiradas, foi então que o anarquista João Perez e Simon Radowitsky num momento de descuido pularam pra cima das forças da ordem tomaram uma metralhadora e começaram a disparar, foi o início do confronto, que durou horas de tiroteio. Os integralistas fugiram em debandada vergonhosa, eram aproximadamente 10 mil seguidores de Plínio Salgado, fantasiados de verde, abandonando suas camisas, deixando bandeiras ao chão, a marcha fascista e o juramento de fidelidade ao seu líder não aconteceram.
Muitos foram os feridos, três policiais reconhecidos perseguidores de “extremistas” foram mortos durante o confronto, também o estudante de direito antifascista Décio Pinto de Oliveira e três integralistas[11]. Os jornais se ocuparam por dias de “noticiar” os acontecimentos. Não havia como esconder, os fascistas foram expulsos da rua.
Segundo o informe reservado do DOPS do infiltrado Guarany no ambiente anarquista: “Agora fala-se muito nas proezas de Natalino Rodrigues no dia 7. Este elemento é tido como um dos principais envolvidos nas lutuosas ocorrências”[12].
Ainda no dia 7 de outubro após a Batalha da Praça da Sé a sede da FOSP é invadida pela polícia política. Lá os agentes da ordem relatam terem encontrado um revólver em cima de um armário. Prendem reconhecidos animadores da FOSP dentre eles, o “anarquista destemido” João Perez[13] e Natalino Rodrigues[14], acusando este de ter matado a tiros durante os confrontos na Praça da Sé dois agentes da ordem. A FOSP, o CCS, A Plebe protestam contra as prisões. Não muito tempo depois vários anarquistas de outras nacionalidades são expulsos do Brasil sumariamente pela recém nascida Lei de Segurança Nacional. Rodolfo Felipe principal responsável por A Plebe é preso. Walfrido Guimarães[15] é delatado para o DOPS por participar de atividades anarquistas e de atirar da janela de seu escritório contra integralistas em marcha na rua.
Logo do confronto nas páginas de seu jornal A Offensiva Plínio Salgado chora: “Fomos agora atacados, dentro de São Paulo, por uma horda de assassinos, manobrados por intelectuais covardes e judeus. Lituanos, polacos, russos, todos semitas, estão contra nós”.
Três anos após a batalha da Praça da Sé em uma eleição que por fim não ocorreu o líder integralista ao lançar sua candidatura a presidência durante um comício é varejado a bala na sacada do prédio onde discursa no centro de São Paulo e se escapa por pouco. Lá estavam os anarquistas!
Armando Guerra
Crônica Subversiva n° 4, Outono – Inverno 2019
Notas:
[1] Liderança do partido comunista brasileiro por aproximadamente 50 anos.
[2] O culto a uma personalidade mais que a uma idéia ou princípio fica evidente em expressões como Marxismo, Leninismo, Trotskismo, Stalinismo.
[3] Guerra Constitucionalista de 1932, financiada pelas elites paulistas buscando garantias constitucionais do futuro dos rumos da vida política. As forças de Getúlio Vargas vencem e a nova constituição é escrita.
[4] Com o Presídio do Paraíso, o Presídio Maria Zélia, ambos em SP, a Colônia Penal de Dois Rios em Ilha Grande RJ, ainda a penitenciária chamada Casa de Correção junto ao Gasômetro em Porto Alegre e tantos outros tristes locais de suplício. Vale recordar que data desta época o inicio do uso de gás lacrimogêneo contra quem protesta nas rua.
[5] Partido do vice presidente Mourão.
[6] São também destes anos os jornais anarquistas O Rebelde Órgão do Comitê de Relações dos Grupos Anarquistas de São Paulo, A Lanterna expressão anticlerical difundido largamente por todo Brasil, O Trabalhador, O Trabalhador da Light, O Trabalho, jornais de agitação operária com princípios anarquistas, Alba Rosa, Guerra Social ambos em italiano.
[7] Edgar Rodrigues, O Anarquismo no Banco dos Réus. Rio de Janeiro, VJR 1993. Pág. 144
[8] Fúlvio Abramo. A Revoada dos Galinhas Verdes. São Paulo, Veneta, 2014.
[9] Eduardo Maffei. A Batalha da Praça da Sé. Rio de Janeiro, Philobiblion, 1984.
[10] Edgar Rodrigues. O Anarquismo no Banco dos Réus. Rio de Janeiro, VJR, 1993. Pág.146
[11] Nildo Avelino. Anarquistas Ética e Antologia de Existências. Rio de Janeiro, Achiamé, 2004. Pág.79
[12] Marcos Tarcísio Florindo. O Serviço reservado da Delegacia de Ordem Política e Social de São Paulo na era Vargas. São Paulo, UNESP, 2006. Pág. 56
[13] Edgar Rodrigues. Os Companheiros 3. Florianópolis, Insular, 1997. Pág 23
[14] Raquel de Azevedo. A Resistência Anarquista (1927-1937). São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2002. Pág. 268 e também Lúcia Silva Parra Combates pela Liberdade O movimento anarquista sob a vigilância do DEOPS-SP (1924-1945). São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2003. Pág 133. Relatório 19 outubro de 1934 Pront.716 FOSP vol3 DEOPS/SP, DAESP.
[15] Silva Parra. Combates pela Liberdade O movimento anarquista sob a vigilância do DEOPS-SP (1924-1945). São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2003. Pág 182
agência de notícias anarquistas-ana
nenhum pio
depois do trovão
apenas uma fragrância
Alonso Alvarez
Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/10/01/memoria-combativa-a-batalha-da-praca-da-se/